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Indulto de Bolsonaro não atende aos requisitos legais e constitucionais

Por Paulo Márcio 

O artigo 107, inciso II, do Código Penal, estabelece a anistia e a graça ou indulto como causas de extinção da punibilidade, vale dizer, como fatores que impossibilitam o Estado de punir o autor de um fato criminoso. De modo que, fulminada a pretensão punitiva do Estado pela ocorrência de uma dessas causas, vedada estará a imposição de qualquer pena ou sanção ao réu.

Enquanto a anistia, de uma maneira geral, atinge os chamados crimes políticos e é concedida pelo poder legislativo através de lei ordinária, a graça e o indulto incidem sobre os crimes comuns e são, ambos, de competência privativa do Chefe do Executivo Federal, ou seja, do Presidente da República, nos termos do artigo 84, inciso XII, da Constituição Federal, que poderá, a teor do disposto no art. 48, inciso XII, da Carta Magna, delegar a atribuição de concessão de tais benefícios aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União.

Outra característica relevante da anistia é que ela possui maior amplitude em relação à graça e ao indulto, pois tem o condão de excluir o crime, rescindir a condenação e extinguir totalmente a punibilidade, ao passo que estes somente extinguem a punibilidade, total ou parcialmente.

Decorre daí que a anistia, mais do que impedir a punição do réu no caso concreto, extingue também os efeitos principais e secundários da pena, mas não os efeitos de natureza civil. Assim, por exemplo, no caso de um réu anistiado vir a praticar um novo crime, não será considerado reincidente, o que não ocorre em relação aos beneficiados pela graça e indulto.

Por tais características, a anistia pode ser concedida tanto antes do trânsito em julgado da decisão condenatória (anistia própria) quanto depois do trânsito em julgado do decreto condenatório (anistia imprópria).

Relativamente à graça ou indulto, o entendimento majoritário da doutrina é no sentido de que só podem ser concedidos após o trânsito em julgado da condenação, sob pena de imiscuição de um poder (Executivo) nas atribuições de outro (Judiciário), algo que, longe de se coadunar com o sistema de freios e contrapesos consagrado nas constituições democráticas, pode configurar clara violação de prerrogativas e, por conseguinte, provocar um choque entre poderes e instituições republicanos, vulnerando os pilares do Estado Democrático de Direito e, particularmente, o princípio da independência e harmonia entre os poderes.

Por outro lado, não se pode omitir o fato de que tal entendimento doutrinário vem sendo paulatinamente mitigado em face dos reiterados indultos natalinos. Com efeito, vem-se admitindo a concessão do benefício desde que tenha havido o trânsito em julgado para a acusação ou nas hipóteses em que o recurso do Ministério Público não objetiva o agravamento da pena concretamente imposta.

Feitos esses esclarecimentos necessários, passemos à análise do indulto individual (graça constitucional) concedido ao deputado federal Daniel Silveira por ato do Presidente da República, um dia após a condenação do réu pelo Supremo Tribunal Federal à pena de oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicialmente fechado, e multa de R$ 192,5 mil, corrigida monetariamente, pelos crimes de coação no curso do processo e tentativa de impedir o livre exercício dos poderes da União.

Costuma-se dizer que a graça é um benefício individual, ao passo que o indulto é um benefício coletivo. Daí a afirmação de que a graça não é senão um indulto individual.

Porém, a coisa não é tão simples ou superficial quanto parece, donde a existência de requisitos diferentes para a concessão de um e de outro benefício. A começar pelo fato de que “A graça representa um benefício de caráter individual *concedido mediante provocação da parte interessada,* ao passo que o indulto possui caráter coletivo e é *concedido espontaneamente* (Rodrigo Monteiro da Silva, in Crimes hediondos e os institutos da anistia, graça e indulto, encontrável no endereço eletrônico https://blog.editoramizuno.com.br/crimes-hediondos-e-indulto/).

Do ponto de vista processual, portanto, a graça constitucional (indulto individual) concedida pelo presidente Jair Bolsonaro deixou de atender a dois requisitos inafastáveis: a) provocação da parte interessada; e b) trânsito em julgado da decisão condenatória ou, no mínimo, trânsito em julgado para o Ministério Público Federal ou existência de recurso que não pugne pelo agravamento da pena.

Além de pecar pela espontaneidade e extemporaneidade, o decreto presidencial extrapolou os seus limites materiais ao tentar estender o perdão, ainda que por via oblíqua, aos efeitos secundários de natureza extrapenal específicos ou não automáticos da condenação, notadamente a suspensão dos direitos políticos e a perda do mandato parlamentar.

Nesse ponto, não há o que discutir, ante a clareza e assertividade da Súmula 631 do STJ: “O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais”.

Assim, não obstante a previsão quanto à possibilidade de concessão de perdão pelo Presidente da República, o ato só é válido e apto a produzir efeitos se estiver material e formalmente em conformidade com os princípios constitucionais. E tais requisitos, como não poderia deixar de ser, passarão obrigatoriamente pelo crivo do Supremo Tribunal Federal, a quem compete a última palavra em matéria constitucional.

Paulo Márcio Ramos Cruz é delegado de Polícia Civil do Estado de Sergipe

Modificado em 22/04/2022 10:46

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