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Independência judicial a quem serve?

Por Antonio Henrique de Almeida Santos

Em um Estado Democrático de Direito o exercício da judicatura tem dupla natureza. O de servir ao povo e o de ser membro de Poder. Sendo o povo o real detentor do poder, qualquer agente público só existe para serví-lo. Seja um escriturário, um técnico, um professor, um juiz, um parlamentar, um membro do executivo; todos são, no sentido amplo da palavra, servidores públicos, porque sua missão será sempre entregar ao povo um determinado serviço. Não obstante, em um outro e mais estrito sentido, o magistrado é também um membro de Poder do Estado. Assim como o é o prefeito, o governador, o presidente, vereadores, deputados, senadores. É que exercem o poder pelo Estado ou, noutra visada, incorporam o poder do Estado.

Como se pode inferir do que fora dito, o poder de um agente do Estado é instrumental. Serve a um propósito vinculado ao seu dever. É, por assim dizer, uma ferramenta sem a qual não há como cumprir sua missão. Imagine-se, por exemplo, um policial que tem o DEVER de manter a paz e ordem sem o PODER de prender uma pessoa que está cometendo um crime. Evidentemente não há como. É assim com qualquer agente público e, especialmente, com os agentes de Poder do Estado. É assim com os juízes e juízas.

Enxerga-se, pois, nesse cenário, a Independência Judicial como a principal ferramenta a permitir aos magistrados o exercício de seu trabalho e o cumprimento de sua missão que é, a meu pensar, afirmar e fazer o valer o direito no caso concreto, cumprindo a Constituição e as demais normas do país. Vale dizer, sem independência, o juiz não tem como entregar o que é de direito ao povo.

Para ilustrar o que afirmo, imagine-se um juiz com medo de decidir um caso posto em um processo, porque, a depender da decisão, poderia vir a ser de alguma forma punido. Vir a ser, por exemplo, removido de seu local de trabalho, ter sua remuneração reduzida, perder seu cargo. Imagine-se uma situação, e não são poucas as existentes, em que um magistrado tivesse que proferir uma decisão que contrariasse os interesses de um poderoso local. Poderia fazê-lo sem independência? É certo que não. E é por isso que a Constituição previu, em seu artigo 95, as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios. Nesse tom, o juiz não pode perder seu cargo, senão por sentença judicial; não pode ser removido de seu local de trabalho contra sua vontade, a não ser como resultado de processo administrativo onde lhe seja assegurada a ampla defesa e não pode ter seus vencimentos reduzidos.

Aprofundando um pouco a análise dessas garantias, não é difícil perceber que são antes garantias da população e só indiretamente do juiz. São garantias da população porque se tratam das ferramentas que permitem ao juiz julgar de modo independente, de acordo com seu convencimento motivado acerca do direito que se aplica ao caso sob seu julgamento. São as garantias que asseguram ao magistrado que sua integridade laboral será preservada independentemente de quem venha a desagradar com sua decisão. A independência do Poder Judiciário, que decorre das garantias asseguradas aos seus membros, configura uma das colunas de sustentação do Estado Democrático de Direito. Noutras palavras, sem a independência da Judicatura o Estado Democrático de Direito não existe, cai por terra. Daí decorre que a independência da magistratura, e as garantias que a sustentam, deveriam ser defendidas por todos. Não por se consubstanciar em vantagens para os juízes, mas por serem pilares da cidadania.

Mas, poder-se-ia indagar, sendo o juiz necessariamente independente para exercer sua função, não há como rever suas decisões? Serão as decisões judiciais perenes, eternas, imodificáveis? Não, sabemos que não. O sistema jurídico possui, desde a Constituição até as leis processuais, uma série de regras pré-estabelecidas que permitem a quem se sentir prejudicado por uma decisão judicial pleitear a anulação ou modificação. Em bom português, as regras processuais possuem um extenso cabedal de recursos e outras medidas jurisdicionais, como ações específicas, aptoas a reformar a decisão judicial. E, sabemos também, no ordenamento jurídico brasileiro essas possibilidades são inúmeras.

Então, em apertado resumo, o juiz exerce sua essencial independência quando decide fundamentadamente no bojo do processo. Por sua vez, o interessado que entende ter seu direito inobservado com a decisão tem uma série de ferramentas processuais para buscar modificar a decisão e a assecuração de seu direito. Essas são as regras do jogo processual democrático. Regras, aliás, deveras conhecidas por todos que fazem parte do sistema deJustiça, como juízes, advogados, defensores públicos, membros do Ministério Público etc.

Ocorre, por outro lado, que o juiz, como qualquer cidadão, pode incorrer ou ser acusado de desvios no exercício de sua função. Pode-se, exemplifique-se, acusar um magistrado de desídia, de corrupção, de falta de urbanidade no tratamento das partes etc. Nesse caso, o magistrado deverá responder pela acusação que lhe for feita perante o órgão encarregado, que é a Corregedoria de Justiça do Tribunal a que está vinculado ou a Corregedoria Nacional de Justiça, esta ligada ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ.

Esse esclarecimento afigura-se, ou deveria afigurar-se, desnecessário àqueles que militam na Justiça, como os profissionais acima mencionados; mas é importante ser apresentado à população em geral que não conhece, e não tem nenhuma obrigação de conhecer, o modo como funciona o Poder Judiciário e as regras jurídicas que o regem. Assim, tem-se claro duas formas absolutamente distintas de alguém se insurgir contra uma conduta de um magistrado. A uma, no curso de um processo jurisdicional, em decorrência de uma decisão fundamentada, proferida no exercício da jurisdição e sob o manto do princípio da Independência Jurisdicional; através dos recursos e ações previstas legalmente para esse fim. A duas, em decorrência de alegação de conduta irregular, indevida ou mesmo criminosa por parte de um juiz; através de representação no órgão correicional local ou nacional.

Afirmar algo diverso disso, pretender a possibilidade de atacar o mérito de uma decisão por representação à corregedoria é um atentado à Jurisdição, ao Estado Democrático de Direito e, por consequência, ao povo brasileiro. Dito de forma direta: o mérito de uma decisão jurisdicional é impossível de ser sindicada correicionalmente. Não existe a menor possibilidade jurídica de nenhum órgão correicional se imiscuir nos fundamentos de uma decisão jurisdicional. O meio, repita-se, de se insurgir contra decisão jurisdicional é o recurso ao órgão jurisdicional superior.

Como dito, é absolutamente natural que a população em geral desconheça esses meandros, todavia é indesculpável um advogado não sabê-los. Um advogado que pretende atacar os fundamentos de uma decisão jurisdicional por representação em órgão correicional demonstra, além de despreparo técnico/intelectual, um total desrespeito à Jurisdição, ao povo e, pior, à própria instituição da advocacia. Sim. Explico para quem ainda não entendeu. É que o advogado, além de ser uma instituição essencial à administração da Justiça é um dos principais atores do sistema de Justiça. O advogado é um profissional que é ao mesmo tempo sustentáculo e sustentado pelo sistema de Justiça. Noutra palavras, não existe Justiça sem advogado e não existe advogado sem sistema de Justiça. Há uma simbiose necessária entre Poder Judiciário e Advocacia. E em sendo assim, utilizando-me de um termo popular, um advogado que representa um magistrado porque discorda dos fundamentos de uma decisão jurisdicional, dá “um tiro no pé” da advocacia. É que essa atitude, conforme já demonstrei, atenta contra a Independência Jurisdicional e, portanto, contra um dos pilares do Estado, justamente aquele pilar no qual a própria advocacia está umbilicalmente atrelada.

Portanto, peço licença e permito-me deixar um conselho à população: aquele que quer um Poder Judiciário forte, capaz de garantir seus direitos frente a qualquer pessoa, instituição, frente mesmo a qualquer poder, seja político, econômico ou de qualquer outra espécie; aquele que acredita na democracia; aquele que entende que o verdadeiro poder só pode ser exercido em nome do e para o povo; defenda com unhas e dentes a Independência do Poder Judiciário. Não há outro caminho para a assecuração dos direitos da população e para concretização da democracia.

Querer um Judiciário sem independência é pedir pra cantar e tirar a voz.

*Antonio Henrique de Almeida Santos é presidente da Associação dos Magistrados de Sergipe (AMASE)

Modificado em 05/05/2016 07:43

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