body { -webkit-touch-callout: none; -webkit-user-select: none; -khtml-user-select: none; -moz-user-select: none; -ms-user-select: none; user-select: none; }

A educação básica estadual à sombra do exame de admissão

Por Josué Modesto

A Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961, que fixou as diretrizes e bases da educação nacional, estabeleceu em seu artigo 27: “O ensino primário é obrigatório a partir dos sete anos e só será ministrado na língua nacional”.  Ao tratar do acesso ao ensino médio, então divididos em dois ciclos, os antigos cursos ginasial e colegial, no artigo 36 da mencionada lei, são fixadas as seguintes condições: “O ingresso na primeira série do 1º ciclo do ensino médio depende de aprovação em um exame de admissão, em que fique demonstrada a satisfatória educação primária, desde que o educando tenha onze anos completos ou venha a alcançar essa idade no correr do ano letivo”.

Estamos em outro século, sob outra Constituição Federal, outra Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sob a determinação da obrigatoriedade do ensino fundamental e com metas de universalização da matrícula na educação infantil e no ensino médio a ser cumprida por orientação do Plano Nacional de Educação até o ano de 2024. Devemos reconhecer que vários avanços foram obtidos pelo País na extensão da matrícula nas diversas etapas da educação básica e até mesmo, em alguns casos, na melhoria dos resultados educacionais. Todavia, há aspectos muito preocupantes, que tentaremos abordar a seguir.

 

Tentemos esclarecer esse gráfico. No eixo vertical temos o número de alunos matriculados na educação básica em Sergipe nas redes públicas e privadas no ano de 2018. A fonte dos dados é o Censo Escolar realizado pelo INEP. Os dados foram extraídos do site qedu.org.br. No eixo horizontal temos os anos/séries da educação básica, isto é, os nove anos do ensino fundamental, que aparecem com os números 1F a 9F, conforme o ano de ensino e as três séries do ensino médio que aparecem com os números 1M a 3M. A linha laranja registra o número de alunos matriculados na série/ano na rede pública, e a linha cinza, o mesmo critério para o número de alunos matriculados na rede privada.

A grande diferença de comportamento das linhas chama a atenção. A linha cinza, que representa a matrícula nas escolas privadas, tem um comportamento de declínio suave e persistente, passando de uma matrícula de 9.416 alunos no primeiro ano do ensino fundamental para 8.427 alunos no sexto ano do ensino fundamental. Tal comportamento se explica pela grande taxa de aprovação dos alunos vinculados às escolas privadas. Neste segmento, 99% dos alunos são aprovados nos cinco anos que compõem os anos iniciais do ensino fundamental e 94% são aprovados nos quatro anos que compõem os anos finais do ensino fundamental. Estas relativamente elevadas taxas de aprovação, mas que não chegam a 100%, deveriam causar um suave crescimento da matrícula com o progredir dos anos de estudo e não o seu declínio. Aparentemente algumas famílias começam uma migração para a matrícula na escola pública passados os anos iniciais do ensino fundamental. A redução mais significativa da matrícula na escola privada ocorre na transição para o ensino médio. A matrícula na primeira série equivale a 72,5% da matrícula no último ano do ensino fundamental, indicando duas coisas: a) parte das famílias optam pela escola pública nesta etapa, talvez induzidas pelo incentivo das quotas oferecidas ao acesso de estudantes egressos do ensino médio público por instituições públicas de ensino superior; b) a taxa de aprovação no ensino médio continua elevada.

Resumidamente, há uma grande chance de que o estudante matriculado em escolas privadas, em Sergipe, nos anos recentes tenha uma trajetória de sucesso educacional. Para isso eles contam com os maiores recursos econômicos e acesso a bens culturais que suas famílias podem dotá-los. A própria educação dessas crianças conta com a interferência de outras instituições, além da escola regular: cursos de línguas estrangeiras, de artes e de esportes podem ser disponibilizados e o rendimento escolar é monitorado pela família e pela escola. No caso de necessidade, a intensificação de aprendizagem é acionada. Por vezes, todo esse processo exige esforços econômicos acima das possibilidades das famílias, mas estas, mostrando confiança no valor da educação, empenham a segurança econômica da família em prol do futuro dos filhos.

Quanto às matrículas nas redes públicas, ao contrário, o que se destaca é o persistente e acentuado crescimento de seu número com o suceder dos anos de escolarização. Assim sendo, no primeiro ano do ensino fundamental, em 2018, estavam matriculados 20.445 estudantes, sendo este número crescente até atingir o primeiro ápice no quarto ano, no quinto há uma primeira e significativa redução de matrícula, quase 9%, podendo indicar um primeiro movimento de evasão escolar, não obstante a obrigatoriedade da matrícula nesta etapa do ensino fundamental. Chegamos ao pico da matrícula na educação básica na rede pública no sexto ano do ensino fundamental quando o número chega a 38.590, ou seja, um crescimento de 89% em relação ao número de matrículas no primeiro ano.

Em relação à legislação sob a égide da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a legislação em vigor estendeu o ensino fundamental para nove anos, começando a escolarização com 6 anos de idade, ao contrário dos 7 anos da legislação anterior, e incorporou o primeiro ciclo do antigo ensino médio (ginasial) perfazendo um total de nove anos de escolaridade obrigatória no ensino fundamental. Como vimos, na vigência da Lei de Diretrizes e Bases de 1961 se previa um exame de admissão ao ginásio. De fato, a oferta de vagas nas redes públicas e privadas era insuficiente para a demanda decorrente do acelerado crescimento demográfico e da urbanização que o Brasil experimentou nos anos após o final da Segunda Guerra Mundial. O exame de admissão ao ginásio selecionava os alunos que tivessem conseguido a melhor aprendizagem, aferida em uma prova, para acesso às vagas ofertadas pelos ginásios e que também cumprissem o requisito de idade mínima.

Tudo isso é muito antigo e pode soar estranho para muitos. Hoje as escolas começam campanhas para matrículas no final do segundo semestre visando ao ano seguinte e mesmo as redes públicas são instadas a procederem a busca ativa por jovens que não estejam matriculados.

O que os números demonstram e o gráfico nos auxilia na visualização é que nas nossas escolas públicas há um jogo voraz de destruição de sonhos dos jovens, de extermínio das esperanças de suas famílias. Começando no primeiro ano e chegando ao clímax no sexto ano, que corresponde ao primeiro ano ginasial, no sistema antigo, nossas crianças e jovens são inapelavelmente desestimuladas a prosseguir. A partir do sétimo ano do ensino fundamental a curva tem uma inflexão começando a queda no número de matrículas conforme avançam os anos de escolarização, terminando o nono ano do ensino fundamental coincidentemente no mesmo patamar de matrículas do primeiro ano.

A chegada do ensino médio traz um crescimento da matrícula de 24% em relação ao último ano do ensino superior. Se o leitor não prestou muita atenção ao gráfico, não se entusiasme; significa apenas que na primeira série do ensino médio há novamente uma forte taxa de reprovação fazendo que esta matrícula esteja inflada com alunos remanescentes de anos anteriores e que persistem na escola. As séries seguintes são de declínio consecutivo das matrículas e parte dos nossos jovens marcados por reprovações escolares vão nos abandonando, conforme o retratado pela curva laranja.

Há um jogo em que vidas terão o destino traçado, muitos fracassarão. O que surpreende é que não haja reação com vigor suficiente para dizer não. Os jovens que frequentam nossas escolas também merecem um tratamento que dê oportunidades justas para todos; que dê tempo suficiente para o aprendizado; que compense as dificuldades das famílias na oferta de apoio educacional doméstico e extraescolar.

Os sonhos dos mais pobres, as esperanças de suas famílias merecem todos os esforços. Se não estamos fazendo isso, estamos fracassando como República. Na realidade, para os estudantes da escola pública estamos recriando implicitamente um sistema que a legislação revogou, o exame de admissão para barrar os que não têm as mesmas oportunidades acessíveis aos níveis socioeconômicos mais elevados. A escola foi desenhada como minimalista, alguns se acham muito espertos quando afirmam que a educação vem do lar (a versão mais crua diz do berço) desobrigando-se, ao arrepio da lei vigente, da intensificação de aprendizagem, oferecendo quantidades mínimas de insumos e equipamentos e, para surpresa de muitos militantes da educação, encontramos a oposição em lugares insuspeitos nas tentativas de tornar o ensino público mais abrangente, mais inclusivo, mais equitativo. As vidas dos mais pobres importam e, neste caso, são majoritariamente vidas negras que importam, também, para ter acesso a um sistema justo de educação, um sistema que mire a equidade de oportunidades, critério que tem sido negligenciado até aparentar chegar ao limiar da naturalização.

 

Josué Modesto é secretário de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura (Seduc) e ex-reitor da Universidade Federal de Sergipe

Modificado em 27/07/2020 15:30

fabio: