Por Paulo Márcio (Texto atualizado às 18h44)
De acordo com um levantamento divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2017, o Brasil ocupa atualmente o 9º lugar no ranking dos países com maior número de homicídios, com uma taxa de 30,5 homicídios por grupo de 100 mil habitantes, o que corresponde a aproximadamente 60 mil assassinatos por ano.
Embora não haja um estudo fundado em dados oficiais, abrangendo todo o território nacional, é possível inferir, a partir das estatísticas divulgadas isoladamente por algumas secretarias estaduais e municipais, que entre 50 a 60% dos homicídios estejam relacionados ao tráfico de drogas.
Diante de números tão alarmantes, há mesmo quem assevere que estamos assistindo a um verdadeiro genocídio da população negra. Um estudo divulgado há pouco mais de dois anos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) constatou que 71 em cada 100 pessoas assassinadas no Brasil são negras. Estudos correlatos indicam que, além de negras, são jovens, residem na periferia e possuem baixo grau de escolaridade. Os mesmos segmentos que denunciam o holocausto quase sempre defendem uma mudança no modelo de política antidrogas adotado no país, pugnando pela descriminalização ou pela legalização do porte de substâncias ilícitas para uso próprio.
Na outra extremidade do espectro, avoluma-se o número de pessoas a clamar por um maior rigor em relação ao tráfico, quase sempre pela adoção de medidas mais duras como o aumento do tempo de prisão para os traficantes, o fim da progressão de regime e outras vedadas expressamente pela Constituição Federal, a exemplo da prisão perpétua e da pena de morte. No meio do fogo cruzado entre proibicionistas e defensores da legalização, o Congresso Nacional opta pela omissão, de vez em quando turbada por alguma audiência pública em que especialistas têm a oportunidade de expor e confrontar seus diferentes pontos de vista.
Não obstante, as chances de aprovação de uma proposta que legalize o uso de drogas no Brasil são praticamente nulas no cenário atual. Todavia, há uma tendência de que o Supremo Tribunal Federal venha a descriminalizar o porte de pequenas quantidades de droga para consumo pessoal, decidindo pela inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas). O julgamento do Recurso Extraordinário 635.659, com repercussão geral, no qual se discute o assunto, foi suspenso por um pedido de vistas do ministro Teori Zavascki, morto no início do ano passado em um acidente aéreo. Até aquele momento, os três ministros a se manifestar (Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso) haviam votado a favor da descriminalização. O próximo a votar será o ministro Alexandre de Moraes, substituto de Teori, com quem se encontram os autos do processo.
Descriminalizar significa deixar de considerar determinada conduta como crime, e, por conseguinte, insuscetível de sanção na esfera penal, porém passível de punição civil ou administrativa, sendo as mais comuns a multa e a prestação de serviços. De acordo com a legislação em vigor, o indivíduo detido com uma quantidade de substância ilícita que configure, em tese, o crime de porte para consumo pessoal, não pode ser autuado em flagrante delito. Nesses casos, ele é conduzido à presença de um delegado de polícia, que, entendendo tratar-se do crime tipificado no art. 28 da Lei de Drogas, determina a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência. Após assinar um termo de compromisso de comparecimento ao juizado especial criminal, o usuário é liberado imediatamente, respondendo ao processo em liberdade. Se condenado, será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Como se vê, não há previsão de pena de prisão.
No entanto, na prática, nem sempre é possível diferenciar, com facilidade, o usuário do traficante. E a Lei de Drogas não sana esse problema, já que estabelece, em seu artigo 28, §2º, apenas critérios subjetivos a serem observados pelo juiz (e inicialmente pelo delegado, a quem cabe analisar se tratar de um ou outro crime,): “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”
Atento ao problema e antevendo a declaração da inconstitucionalidade do artigo 28 da citada lei, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, no último dia 08 de março, solicitou à presidente do STF, Cármen Lúcia, que não só coloque em pauta o processo que trata da descriminalização (Recurso Extraordinário 635.659) quanto estabeleça uma quantidade mínima para diferenciar o usuário do traficante.
A descriminalização do porte para consumo próprio, com o estabelecimento de critérios objetivos de diferenciação, traz um pouco de racionalidade ao nosso modelo de política antidrogas, além de frear o desmedido encarceramento ocasionado por falíveis avaliações subjetivas. Mas sequer tocará a superfície de um problema muito mais grave e profundo: a trágica relação entre o tráfico de drogas e os homicídios – o grande flagelo do Brasil e outros países da América Latina. Enquanto legalistas e proibicionistas seguem se digladiando sem que o poder público lhes dê a mínima atenção, as fronteiras permanecem escancaradas, as facções continuam expandindo seu regime de terror sobre as comunidades mais carentes e milhares de vidas são impiedosamente ceifadas todos os anos pelos carrascos e soldados a serviço dos barões do tráfico.
Paulo Márcio Ramos Cruz é delegado de polícia civil e articulista do Universo